Alberto Tassinari - Paulo Pasta e a Grandeza do Motivo
01/01/2015

Paisagens também são construções. O quadrante do Estado de São Paulo definido desde a capital para o oeste e, num giro em sentido horário, para o norte, cobre boa parte de suas terras agriculturáveis e de boa qualidade. São terras, em geral, o bastante planas e manejáveis com certa facilidade para o plantio por curvas de nível e outros processos. Onde havia a natureza selvagem surge outra, cuidadosamente construída ao longo de gerações. A mata atlântica que as cobria só mostra aqui e ali manchas de mato intocado.


Com o avanço das monoculturas e dos agronegócios a partir dos anos 40 do século passado, nos anos 80 completa-se finalmente um ciclo em que boas estradas asfaltadas entre grandes cidades, e também entre as próximas, reproduzem numa escala maior as estradas de terra das fazendas e, entre suas plantações, os carreadores que dão acesso às diversas culturas, em especial, e por vastas áreas, a da cana de açúcar. Esse espaço que se avista da estrada, e do qual a estrada também é parte, espaço meticulosamente construído, é o motivo das recentes paisagens de Paulo Pasta.


Não é preciso conhecer essa região de São Paulo para atestar o quanto Paulo Pasta a interpreta bem. E aqui toco num ponto dos mais importantes, creio, da sua pintura desde, pelo menos, 1987 - o primado do motivo. Há uma atenção, na sua pintura, em não comunicar nem mais nem menos do que o motivo exige. Sua pintura é exuberante, mas também serena. E basta, para comprová-lo, olhar suas magnificas pinturas - desde aproximadamente 2004 - com motivos arquitetônicos básicos, pilastras e lajes, que se encontram e se desencontram, formam cruzes e as desformam, para avaliar o quanto o motivo arquitetônico conduz a pintura e a eleva.


A atenção do pintor com o motivo é tal que uma paisagem com um vasto espaço à mostra é pintada em dimensões que dão uma área aproximadamente dez vezes maior do que um trecho desse mesmo motivo pintado bem mais de perto. Observação que pode soar estranha, pois, afinal, não é o tamanho do quadro que define a quantidade de mundo que mostra. Paulo Pasta, entretanto, escolheu se mover nesse difícil intervalo entre o espaço de uma pintura moderna, em que ainda vemos, mesmo se um ver do raso, tudo além da tela, e o espaço de uma pintura contemporânea, na qual as dimensões da tela sao parte desse espaço.


As nuvens podem aqui nos conduzir. Nas paisagens de grandes dimensões, por mais dramáticas que surjam, são nuvens que economizam pinceladas. Já nas paisagens de dimensões menores, as nuvens se rebuscam de tal modo que se percebe algo assemelhado aos estudos de nuvens de Constable. O céu e as nuvens estão mais perto se diminuímos nosso ângulo de visão em relação ao horizonte. E estão mais longe se alargamos o ângulo. E é nessa toada que os quadros são pintados.


Mas como nem só de céu vive uma paisagem, também a terra, e o horizonte do encontro de ambos, são pintados de modos diversos conforme o motivo. As passagens entre diferentes solos se acumulam em camadas, nos quadros grandes, pintadas de modo mais liso, enquanto nas de motivos menores, são mais irregulares. E quando a paisagem não é a do campo lavrado, mas trechos de ruas de cidades pequenas, os muros interrompem a vista e o pintor segura assim as dimensões. Não aumenta o que é singelo, embora, um tanto como um Goeldi à luz do dia, desolador. E, do mesmo modo, a noite pintada, com direito a lua cheia, é pequena, pois a noite confina os espaços.


Essa desolação das casas perto da estrada de pequenas cidades de interior, seus muros, seu isolamento, não é diverso da solidão que os vastos espaços dos canaviais transmitem. E mesmo que os observemos desde a estrada, num dia de sol abrasador, ou na tempestade que no horizonte se anuncia e escurece céu e terra, mesmo assim é espaço demais para gente de menos. Essa solidão que Hopper pintou das paisagens americanas também já lavradas e construídas são as antecessoras mais próximas que encontro das pinturas à beira da estrada de Paulo Pasta. Embora em Paulo Pasta  a figura humana esteja ausente.


Sinal, talvez, que monoculturas tão vastas não são obras da natureza, não são pastagens naturais, mas substituição de algo que já não existe. Não há nada de bucólico ou pitoresco nessas paisagens. Nem são propriamente belas. São mais da ordem do sublime, que apraz tanto o quanto dói. Não são sentimentos, creio, assemelhados os que nos transmitem os pastéis de 1984 de Paulo Pasta que se detêm nos mesmos motivos. Talvez retrospectivamente lá se insinuem, mas não com a potência das paisagens de três décadas depois. Essa potência vem das pinturas de motivos arquitetônicos que por três vezes o pintor encontrou, desviou-se, perdeu-se, reencontrou.


Nada de novo há nisso. O titulo que Paulo Pasta deu a seus escritos sobre pintura chama-se mesmo “A Educação pela Pintura”. E ninguém se educa, e importante, não para ser culto, mas comunicar algo, indo direto ao ponto. O motivo arquitetônico, pelo menos até hoje, em 2015, como que chamou Paulo Pasta por três vezes: em 1987, em 1994 e em 2004. Seria longo descrever esses momentos, suas durações, intervalos e até mesmo superposições deles. Que aqui fiquem em notas rápidas. O primeiro deles, o mais breve, vai de 1987 a 1989. O pintor encontra no motivo de ogivas algo góticas um modo de riscar, rabiscar e rasurar  a  tinta grossa de então da superfície de suas pinturas.


Por que pára? Nas pinturas de 1990 a 1993, o motivo mais predominante são padrões assemelhados a cacos rejuntados de um mosaico de chão. Sua pintura perde espessura. As camadas são mais finas e os cacos são como que entrevistos. Esse entrever, embora de outro modo, desemboca em colunas que apenas de vislumbre apoiariam as ogivas de 1987-1989. Entre 1994-1999, Paulo Pasta desbasta sua pintura ao máximo. A cor se torna translucida, como uma pele pregada e esticada sobre a tela. Seus quadros abandonam de vez certo monocromatismo anterior. O motivo então pede mais. Colunas são solitárias. Não preenchem a tela inteira. A pintura e seus problemas chegam todos ao mesmo tempo - como conjugar linhas, formas e cores?


O motivo, a atenção detida nele, quase diária, sugere as respostas. As colunas se interrompem no alto do quadro. Essa invenção Paulo Pasta não abandonará mais, mesmo na fase seguinte de motivos arquitetônicos de 2004-2015. Esse alto, de outra cor ou tom diferente das colunas, essas também com cores ou tons diferentes, formam um diagrama básico que o pintor tornará variado ao extremo. Com exceção do capitel das colunas, o diagrama segue sempre linhas verticais e horizontais, e do mesmo modo em 2004-2015 (com exceção de uma pequena diagonal no alto dos quadros em alguns deles).


Mas é pela cor que esses diagramas ganham vida. A cor de Paulo Pasta transluz. Uma área de cor, seja uma coluna, seja a área entre elas, seja o alto do quadro, tem sempre tons mais claros sutis. Metáforas umas das outras, semelhantes, as colunas também se dispõem lado a lado, metonimicamente. E esse jogo espacial de lugares é seguido pelas cores, já translúcidas, que se comprimem e se expandem por valores ou cores próximas. Sem abusar dos contrastes de cor, mas tensionando ao máximo os de tons da mesma cor, usando duas ou três cores, a pintura, mais óptica abaixo do quadro, como que ainda num espaço ainda moderno, sobe pelas colunas, quase que delas transbordam e se interrompe no alto, lugar onde a cor coincide com a opacidade do quadro, num espaço agora contemporâneo.


Atenção ao motivo, a suas potencialidades, não exagerar, não comedir, deixar a pintura ser tanto optica em certas regiões e opacas em outras, juntar como que impossivieis, o olhar jogado para o alto, elevado, literalmente e simbolicamente (são colunas): grandeza dada ao olhar que desce e de novo ascende.


Essas pinturas de 1994-1999 prosseguem praticamente até hoje. Suas variações a partir de 1999, porém, não me parecem tão magnificas quanto as do período anterior. O espaço entre as colunas ganha a fisionomia de garrafas ou lápis. Numa variação mais livre, mas também aludindo ao arredondado dos capiteis, toma a forma de peões. São pinturas intensas, como tudo em Paulo Pasta há 20 anos. Mas, talvez por me ater demais ao que julgo o pintor também se atém - o motivo - falta nelas essa elevação que se dá tanto ao olhar quanto ao espirito.


Entre 2003-2005, Paulo Pasta, por assim dizer, olha de novo para o chão. Padrões algo retangulares ressurgem na sua pintura. Surgem linhas paralelas desenhando faixas delgadas. Faixas que de novo se erguem. Somem as colunas. Basta uma pilastra para erguer a pintura e uma viga para interrompê-la acima. Surge uma grande variação de diagramas com a abolição do capitel da coluna, pois seu lugar, agora ausente, pode ser ocupado apenas por linhas. O motivo arquitetônico não desaparece e para cada diagrama há uma grande variação tonal e colorista. Um resquício de suntuosidade das colunas desaparece. A grandeza agora é alegre, ou discreta, ou imponente, ou simples, ou complexa, está em toda parte. Está agora, varias décadas depois, nas paisagens natais de Paulo Pasta.



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