Paulo Miyada - Paulo Pasta: Projeto e Destino
22/03/2018

1. Este agora que escapa


Em 1964, o historiador italiano Giulio Carlo Argan publicou pela primeira vez um de seus mais conhecidos ensaios: “Projeto e Destino”. Trata-se de uma reflexão inquieta sobre os sinais de que a própria historicidade da civilização poderia estar à beira de seu final, quando seria substituída por uma vida pós-histórica, sem consciência de seu passado e sem construção de futuro, desprovida de desenvolvimento humano e crítica, inteiramente entregue, portanto, aos tecnocráticos ciclos de repetição de si mesma. Argan colecionava sinais alarmantes e questionava a relevância que a arte poderia ter nesse cenário, ou, melhor ainda, seu lastro para resistir aos imperativos da técnica e da tecnologia.
 

Hoje, enquanto prepara a primeira exposição que reúne um conjunto de suas pinturas de dimensões quase arquitetônicas (2,4 metros de altura por 3 metros de comprimento), o artista paulistano Paulo Pasta tropeçou com a memória do título desse texto. De fato, quando reunidas, essas obras se assemelham a uma série de enfrentamentos em torno de uma mesma hipótese formal, cujos parâmetros em comum, além das dimensões alargadas, abrangem: o campo compositivo seccionado em segmentos amplos e de contornos regulares, quase sempre ortogonais; as linhas definidas entre os blocos de cor assemelham-se a esquemas de cruzes, pórticos, pilares, telhados e vigas; a variação cromática, que combina entre 3 a 6 matizes por tela, todos com valores tonais similares. Formam, portanto, uma sequência de tentativas em torno de um mesmo eixo. Fincam pé em uma paciente investigação do tempo e do espaço que se podem evocar com a pintura. Pensam a própria tradição da pintura, sua história, enquanto procedem de modo investigativo. Seriam, com isso, especulações de um desígnio ou variações de uma sina anunciada?
 

Na argumentação de décadas atrás, Argan debatia-se com veredas da arte contemporânea que não podia deixar de criticar – por considerá-las excessivamente afins aos modos de agir do mercado especulativo, ansioso e alienado de sua própria história. Hoje, o texto ecoa em inúmeras outras denúncias de que há crise numa arte que vê dissolvida sua capacidade de produzir sentido, crítica e valor. O mercado e o consumo – não só de arte, mas também de arte – tomaram o lugar da natureza, do divino, da sociedade e da realidade como parâmetros com os quais a atividade artística poderia espelhar-se ou mesmo medir seus sucessos e ambições. Resta pouco sentido profundo de passado e ainda menos construção consciente de futuro – e, neste lugar, é possível haver arte?
 

Paulo Pasta não pretende ser portador de uma resolução para esse mal-estar. É legítimo perceber, entretanto, que sua prática artística criou fundações justamente no cerne do impasse sobre qual pode ser o lugar da arte. Sua pintura existe no tenso limiar entre, por um lado, um possível desejo de religar uma parcela dos legados da história e, por outro, experimentar a invenção de algo novo. Existe aí um paradoxo impossível de resolver (ou, pelo menos, é impossível que um artista sozinho a resolva): se a obra artística aderir integralmente ao passado, estará desprovida de liberdade de construir seu futuro, estará atrelada a roteiros predeterminados; mas, também, se perder sua capacidade de evocar a história, será vista como mais uma imagem no turbilhão indiferenciado do consumo.
 

Com resiliência rara, Pasta procura sustentar o limiar dessa tensão paradoxal. É talvez por advirem desse limiar que as telas aqui reunidas possuem características ambivalentes: há algo nelas que parece emergir para, logo em seguida, retroceder diante do olhar. Os sutis contrastes entre cores de tonalidade similar vibram e se escondem. Alguma profundidade pictórica é sugerida e, logo, dissolve-se. A lembrança do cromatismo de certo pintor (Volpi, Morandi, Rubens, Tintoretto, Duccio?) se delineia, mas pode ser igualmente substituída pela memória dos muros e fachadas dos bairros populares brasileiros. O máximo curto-circuito acontece quando encontramos uma “Anunciação” (Anunciação amarela, 2015) que faz referência às bruscas e imensas invenções dos primórdios do Renascimento e, simultaneamente, apresenta-se como um inusual aparato que faz aparecer e deixa desaparecer algo que se anuncia, mas não tem nome. Alguma coisa que, assim como o silêncio, o presente e o horizonte, retrocede quando caminhamos em sua direção.
 

O horizonte de crise e limite não se dissolve. Não pode se dissolver. O que cada artista pode almejar é a criação de um lugar de pensamento dentro desse panorama. É plausível também o mergulho irrestrito no real ou o enfrentamento franco do turbilhão das imagens – Argan não soube naquele momento ver o quão longe os artistas poderiam levar essas hipóteses. Mas Pasta está do outro lado, insiste em saber se é possível convergir projeto e destino, o que poderia ser o fim, ou o começo de alguma coisa.­­­
 

2. Horizontes retrocedentes de silêncio
 

O subtítulo acima havia sido escolhido como título desta mostra, antes de ser preterido quando iniciamos a discussão do texto de Argan discutido acima. Vale lembrar que é com a ideia de um horizonte retrocedente de silêncio que a escritora Susan Sontag define a mirada da arte em direção à sua ausência, afinal o silêncio não é algo que possa ser verdadeiramente alcançado. Ele existe por comparação com outra coisa, e retrocede enquanto se caminha em sua direção, como fazem as linhas do horizonte que os navegantes perseguem.
 

Acontece que a reflexão crítica sobre a arte passa também por impasses similares aos que alcançam os artistas – no que tange às suas relações com a história, o destino e o presente. Cada artista e cada conjunto de obras implica uma determinada tradição e linhagem, além de certos paradigmas teóricos e linguísticos que se impõem à tarefa do crítico. Não seria prudente ignorá-los sob risco de produzir algo absolutamente descartável, uma legenda imposta à concretude da obra. Segui-los cegamente, no entanto, leva o crítico a reiterar apenas o que já se sabe e já se disse sobre um trabalho – outra sorte de sina cumprida sem alternativas.
 

É mais do que evidente de que o silêncio, a espera e a atenção são condições fundantes da poética de Paulo Pasta – e por isso o próprio artista propôs deslocar o eixo da discussão para a história e o presente. Nesse sentido, porém, é necessário reconectar as pontas da discussão da obra desse artista e sua maneira de atuar no agora.
 

Pois bem, se é sabido que a poética do silêncio e da ausência condicionam a suspensão do tempo do relógio e do fluxo de notícias cotidianas para a apreensão destas pinturas, também é importante enfatizar que a prática de Pasta almeja cultivar modos de presença. A primeira exposição de Paulo Pasta foi realizada na galeria DHL, São Paulo, em 1989. Desde então, passaram-se mais de 3 décadas, durante as quais muito se discutiu sobre o alinhamento de sua produção com a figuração e a abstração. Em sua obra, o assunto é prolífico, pois ambos esses registros são tratados mais como polaridades do que como dicotomias. Não se trata de ser figurativo ou abstrato, mas de encontrar posições entre esses polos, combinar seus critérios e procedimentos de acordo com cada ciclo do trabalho. Isso porque, é possível afirmar com olhar retrospectivo, a principal chave do trabalho nunca se restringiu aos desafios de representar o mundo e/ou construí-lo; a questão central é como a pintura pode ser parte do mundo, uma presença no espaço, diante dos corpos do artista e do espectador. Quem pinta é alguém de escala humana, para produzir algo que tentará convidar outros corpos a experimentarem novos tempos, distâncias e intensidades de atenção. A pintura, tanto enquanto se faz, quanto enquanto se observa, é tomada como desafio latente à percepção.
 

Não é o relógio que contém o presente, tampouco é a fita métrica localiza o horizonte – e para ouvir o silêncio é necessário praticar a espera e a escuta. A própria evocação do silêncio tampouco está atrelada a um elemento narrativo ou figural. Sua construção no percurso de Pasta parece decorrer do modo como gradativamente colocou a substância da pintura como aspecto mais decisivo de seu labor sem, contudo, exagerar sua gestualidade. Antes o contrário: quanto mais a cor, a planaridade, a composição, a espessura e direção da pincelada assumiram-se como assunto, motivo e meio da produção de Pasta, mais contida sua atitude, menos aderente arroubos de heroísmo, virtuose ou espasmo. Isso tira de cena entendimentos da pintura como indício de alguma performatividade coreográfica e favorece sua concepção como arcabouço que contém algo ou que prepara o espaço em que algo pode acontecer, ou aparecer.
 

Com isso, é justo dizer que, enquanto a poética de Paulo Pasta decide fincar pé no impasse entre a persistência de uma tradição que garante à pintura seu sentido e a resistência ao fluxo de assuntos urgentes que consome a atenção dos cidadãos contemporâneos, a sua práxis depende da ênfase à duração da presença que se forma na conjuntividade entre artista e obra e, em seguida, obra e espectador. Todas as escolhas curatoriais desta exposição procuram circundar essa ênfase e propiciar-lhe condições ideais de expandir-se e tomar espaço.
 

3. Dimensões arquitetônicas de um lugar sem endereço
 

A chegada em uma escala arquitetônica, para Paulo Pasta, deu-se gradualmente, conforme sua pintura alcançou a escala proporcional ao corpo humano e, em seguida, por volta de 1989, superou-lhe até chegar a dimensões próximas às de um muro, um pórtico ou até a fachada de uma casa de frente estreita em lote profundo (tipologia tão típica do vernáculo brasileiro). Com o ganho de escala, potencializa-se o efeito imersivo da pintura, seu transbordamento do campo de visão focal do espectador. O olho, por vezes o corpo todo, pode chegar a percorrer amplas superfícies entre uma e outra cor, um e outro matiz. Nesse interim, efeitos óticos e memórias cromáticas podem intervir sutilmente, atenuando e acentuando contrastes.
 

Ao reunir dez obras dessa escala em um mesmo ambiente, tudo que foi dito acima multiplica-se: além do transbordamento visual interno à cada pintura, há aquele imposto pela espacialidade da sala; aos contrastes e infracontrastes de uma pintura, somam-se os encontros de paletas diversas de duas ou mais obras.
 

A obra que recebe o visitante da exposição, O descanso do pintor (2009) é justamente uma das mais sutis de toda a produção de Paulo Pasta, equilibrada como uma leitura esmaecida das três cores primárias niveladas em uma mesma base tonal muito próxima do branco. Em tempo, cores de tonalidade próximas são aquelas que coincidiriam se fossem convertidas para uma escala de cinzas; quando dispostas em áreas de grandes dimensões, com a concisão cromática peculiar à pintura de Pasta, elas podem produzir intrincadas experiências visuais. Os contrastes entre as cores, por exemplo, aparecem de forma concentrada, por vezes muito sutil, apenas na iminência de se pronunciar. Noutras vezes, são mais explícitos, mas carregam uma inquietante parcela de contraste ótico através da persistência da impressão das cores na retina, como se estivéssemos vendo mais do que efetivamente está pintado. Há diversos casos em que esses fugazes contrastes se combinam em composições polarizadas entre dois ou três matizes dominantes (certo vermelho e certo azul, um amarelo e um lilás...) e esses polos colocam-se em aparente tensão dinâmica, como se um quisesse e pudesse mover o outro em uma dança virtual.
 

Tal dança principia com O descanso do pintor e expande-se no percurso pelas demais obras, até alcançar o calor abrasivo dos alaranjados de Duas cruzes (2006) ou, no sentido oposto, a estabilidade cromaticamente imersiva dos lilases de Quase Nunca (2010). Nos intervalos, aparece a estrutura mais complexa (inclusive sutilmente perspectivada) da já citada Anunciação amarela, a estabilidade improvável da assimetria de Sem título (2017) e a paradoxal paleta fria que se insinua em uma tela tão clara quanto O fim da metade é o começo do meio (2012).
 

No espaço adjacente, espécie de laboratório de percepção ocupado por duas duplas de telas  dispostas frente a frente, estão A noite e O dia (ambas, 2012), transversais a Anunciação vermelha (2015) e Sem título (2017) – todas obras que se destacam como algumas das que possuem maior intensidade cromática e saturação; nelas persiste o recurso da proximidade tonal entre as cores, porém ele funciona como algo que aproxima contrastes que de outra forma seriam muito brutais, ao invés de dar lugar para diferenças cromáticas quase imperceptíveis. Em tais condições, o que se chamou de dança ganha caráter de jogo ou luta. Conforme o visitante vira-se para frente e para trás, ele reencontra estruturas muito similares, mas em paletas de cores invertidas, quase que numa correspondência entre complementares. Assim, pouco a pouco se forma uma espécie de assonância visual, com os campos de cor fazendo o papel das consoantes em um poema. Mais ainda, pela complementaridade inexata das pinturas, emerge um efeito de contraponto musical (e uma rápida consulta a um compositor esclarecerá que contraponto não é contraposição).
 

Ao final, o olhar pode acabar amarrado por um detalhe aparentemente banal, mas que continua demandando atenção e verificação. Por exemplo, o modo como duas finas faixas horizontais equilibram-se nos limites superiores e inferiores das telas O dia e A noite, respectivamente, é capaz de fazer um visitante atravessar a sala com o olhar mais de seis vezes, até ter certeza que compreendeu o que percebeu – posso testemunhar que isso aconteceu pelo menos uma vez, com um diretor de museu que visitava a mostra.
 

Enquanto fazem esses percursos visuais e espaciais, em que lugar estão os visitantes? Quer dizer, é claro que estão dentro do espaço expositivo, conscientes das propriedades cognitivas que ele demanda de quem decide ali adentrar. Mas, ao mesmo tempo, não estão ali – estão em um lugar sem endereço, cujas dimensões e distâncias definem-se prioritariamente pelas flutuações da atenção dos sujeitos. Em nome da fome por realidade que movimenta os circuitos de arte contemporânea, muitos já se dispuseram em desvincular o chamado “cubo branco” das proposições expositivas, denunciando a assepsia de sua promessa de pureza. De fato, o cubo branco não é puro e muito menos é neutro. Ele é um artefato cultural, uma construção de linguagem que realiza um pacto fenomenológico muito específico, que favorece o compartilhamento de certas experiências sensíveis. Assim como é fundamental reconhecer que a arte pode existir em muitas outras espécies de espaço, é edificante encontrar em mostras como esta as condições ideais para a atenção sobre o pensamento plástico de um artista como Paulo Pasta.
 

4. Porque não calar?
 

A maior parte da trajetória de Paulo Pasta como artista tem sido feita em paralelo com sua atuação como professor. Ele foi monitor e professor na Pinacoteca do Estado de São Paulo, lecionou na Escola de Artes Plásticas da Universidade de São Paulo, na Fundação Armando Álvares Penteado, nas Faculdades Santa Marcelina, na Belas Artes e no Instituto Tomie Ohtake (Espaço do Olhar), onde segue tutorando um curso de pintura. Nesse interim, não foram poucos os seus alunos, e todos eles podem atestar que sua relação com a história da arte passa não apenas pela reflexão das formas e narrativas, mas por um enorme repertório de textos, frases e argumentos registrados por artistas, críticos e poetas. Para toda pergunta ou inquietação, Pasta recorre a uma lição do passado e reflete se é necessário refutá-la, adaptá-la ou tomá-la como exemplo. Mais uma vez, projeto e destino.
 

Pois bem, talvez seja o caso então de concluir esse texto com um aviso deixado pelo lacônico Georges Braque, que não anula o sentido do que já foi dito, mas relembra os limites dessa escrita: “Como alguém vai falar sobre cor?… Aqueles que têm olhos sabem o quanto as palavras são irrelevantes em relação ao que eles veem”.
 



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